Horror lovecraftiano contemporâneo: Uma resenha de Cultos Inomináveis

Século XXI. No arranha-céu de uma metrópole uma mulher acaba de cortar a garganta de um ser estranho, um homem com pupilas dilatadas, face semelhante a de um anfíbio. A mulher está nua, porém coberta de letras de um idioma desconhecido, igual ao encontrado na estranha circunferência que encontra-se no chão, projetada por um eficiente aparato tecnológico.

Na mão da mulher, um tablet que emite algo como um holograma de tentáculos que brotaram do dispositivo após ela ter concluído uma estranha fala, repetida em uníssono por um coro que se fez ouvir pelo aparelho de celular da mulher, conectado em uma transmissão online de vídeo em de uma rede social: afinal, ela era uma reconhecida youtuber que fazia vídeos chocantes e aterrorizantes. Ela é um fenômeno junto as jovens, liderando o “Culto das Mil Vozes do Horror”, o nome de seu canal. É claro que os “efeitos especiais” são bastante realistas e há alguns que consideram este tipo de atividade absurda; mas a liberdade artística e as performaces chocantes fazem parte de nossos tempos.

Mas eles não sabiam que nada daquilo era forjado. Eles não sabiam que participavam de algo que alteraria completamente a história da cidade. Não sabiam que os tentáculos que saíam do tablet da mulher também começavam a aparecer no entorno do centro comercial. Não sabiam que participavam de um Culto… Inominável.

Esta é uma das possíveis interpretações da capa do livro de Manuel Sueiro, Ricardo Dorda, Luis Barbero e Jokin Garcia, publicado em 2014 pela Nosolorol. Apenas encarando as possibilidades que o livro traz em sua portada (capa) temos acesso a vários elementos interessantes que o jogo de RPG Cultos Inomináveis (Cultos Innombrables) apresenta a todos nós. Convido a todos vocês a seguirem comigo nesta resenha que não seguirá necessariamente os nove capítulos do livro, que apresenta 2 aventuras completas para jogar. Teremos aqui uma resenha temática, seguindo alguns eixos escolhidos pelo cultista que vos fala.

> FICÇÃO LITERÁRIA

O primeiro ponto a ser destacado em Cultos Inomináveis, a despeito de sua proposta enquanto jogo, é a produção ficcional literária. Há 10 relatos (contos) distribuídos por todo o livro (normalmente ao término dos capítulos). A centralidade deste elemento no livro é tão grande que há referência a cada conto no sumário do livro. E por que isto? Por que há tanto destaque para a produção ficcional ao passo de um autor literário (Rosendo Patier) ter sido chamado para escrever especificamente todos os contos do livro?

Cultos Inomináveis é um jogo de RPG que traz a mitologia conhecida pelos fãs da tradição do horror cósmico (presente nas obras de H.P. Lovecraft, Robert W. Chambers, etc) ao mundo contemporâneo, inserindo os questionamentos éticos, políticos e a tecnologia de nosso tempo para o cenário de horror cósmico, pressão psicológica e loucura construídos por um dos mais conhecidos autores da literatura de horror e terror. Esta abordagem atualizada (uma vez que os cenários tradicionalmente associados ao universo de Mitos de Cthulhu (ou Mythos, simplesmente) tratam-se da primeira metade do século XX) não se faz necessária apenas enquanto um procedimento metodológico (afinal, o livro de RPG é também um guia). Já que o acesso ao repertório semântico do horror se deu originalmente por meio da ficção literária, acessar os contos presentes em Cultos Inomináveis é algo fundamental para que nos adequemos à experiência proposta. Como seria uma degeneração que partiria de dispositivos eletrônicos? Como seriam as questões relacionadas ao tratamento psiquiátrico em um mundo que questiona o enclausuramento de indivíduos nos outrora chamados manicômios? Tais questões, somadas às motivações das personagens protagonistas, suas dores e questionamentos, auxiliam e muito a todos compreenderem do que se tratam os Cultos Inomináveis (aliás, o inominável enquanto conceito já encontra-se presente no cânone lovecraftiano, já que denomina o Livro Negro que compila diversos cultos existentes na história; um tomo escrito por Friedrich Willhem von Juntz em 1839 denominado literalmente Cultos Inomináveis, ou melhor, Unaussprechlichen Kulten).

Cabe ressaltar que não há essencialmente algo inovador nesta abordagem atual de elementos do horror cósmico ao mundo contemporâneo. Muitos seguidores da mitologia criada por Lovecraft trazem os seres cósmicos e a estrutura de horror aos tempos de hoje, como a obra publicada pela editora Retropunk, o romance “O Amuleto”. Ocorre que a perspectiva ficcional centraliza-se não em investigadores, mas nos cultistas, o que torna as coisas bem distintas do que tradicionalmente pensa-se a respeito do horror lovecraftiano (ainda que haja vários contos que possuem cultistas como protagonistas). Aliás, o cultista do século XXI é apresentado não como um ser louco, isolado, um acadêmico ou diletante. Ele é como qualquer um de nós. Como você que está lendo esta resenha. Qualquer pessoa curiosa, que deseja saber um tanto mais sobre o obscuro e tentador universo que nos cerca e que é aplacado por “verdades” não é apenas um “potencial cultista”, mas É um cultista. Abrace a verdade, abrace o medo, abrace a loucura.

> ARTE

Ainda dialogando com o quesito estético, a Arte do livro é fascinante. Cada página simula o antigo tomo Cultos Inomináveis e cada ilustração, inclusive a das criaturas da mitologia de Lovecraft, é extremamente imersiva. Borja Arribas e Marga Donaire (esta também ilustradora do excelente Scroll, de Edanna Real Reyes) fizeram um trabalho primoroso em alternar a diagramação do texto, fazer os contos com páginas se simulam um livro, e relacionar toda a experiência de leitura ao que o jogo pretende passar. A arte do livro definitivamente não é algo descartável.

> A ABORDAGEM DO HORROR CÓSMICO

Ok, temos algo como uma fanfic da mitologia que se desenvolveu em um círculo que exacerba Lovecraft, você pode estar pensando. Mas não é isto que fazemos ao jogarmos qualquer RPG que dialoga com uma produção canônica? Poucos reproduzem fielmente os livros de Jack Vance ao explorar planetas “doidões” em seus jogos de ficção interestelar. Mas o que chama atenção é que não se trata apenas de um “F5 nos Mythos” por aqui. Os anos desenvolvimento do jogo (que são confessados pelos autores em várias partes do livro) mostram que há uma acuracidade bem interessante em Cultos Inomináveis. Os autores não apenas buscaram atualizar o cenário, mas inserir elementos de nossa produção ficcional contemporânea a respeito do terror no mundo de jogo e na experiência proposta ao jogar.

Isso significa afirmar que Cultos Inomináveis não joga a tradição dos Mythos de Cthulhu no século XXI, mas traz toques do horror conspiratório, da perspectiva fragmentada de mentes pressionadas pelas contendas modernas, as relações midiáticas e das corporações e o próprio andamento narrativo de produções fílmicas, de ficção e séries para o jogo. E acho que esse é um ponto alto deste RPG: Cultos Inomináveis é um jogo de nossos tempos, flertando com modos narrativos, questões éticas e morais de nossos tempos. E claro, tudo isso flertando com o horror cósmico, pois é muito mas gostoso.

Logo, em um mundo no qual há mais informações disponíveis e que conspirações internacionais e grupos de interesse diverso se associam (pela internet, em partidos, sindicatos, em grupos de RPG, por que não?), a busca pelo incompreensível está dispersa e as práticas “ocultas” não está nas mãos apenas de algozes vilões. Pense bem, a produção ficcional contemporânea torna as coisas bem cinzentas ao pensarmos que não há necessariamente “bem e mal” em vários cenários. Essa torção inicial da condição de investigadores coloca todos nós como potenciais cultistas; os responsáveis em grande medida, pelo desvelamento da(s) verdade(s) e pelo horror incessante no mundo. Afinal, o horror SEMPRE esteve aqui, não é mesmo?

Como dito anteriormente, isso não é necessariamente algo pra dizer: uau!, mas é inovador em termos de RPG pela forma que isto se dá. Primeiramente porque a linha temporal de nosso mundo pode ser compreendida de 3 formas distintas quando jogamos Cultos Inomináveis: 1. Lovecraft é um autor reconhecido apenas, e uma referência aos cultistas; 2. Lovecraft foi um cultista e suas obras não apenas predisseram o que ocorreu no século XX como são pistas para a compreensão do presente; 3. O MUNDO CONTEMPORÂNEO ESTÁ INSERIDO NO CÂNONE DE LOVECRAFT/SEGUIDORES DA MITOLOGIA CÓSMICA. A última possibilidade (em letras garrafais, aliás) é um giro incrível ao pensarmos na proposta do jogo. O que está presente em todas as obras ficcionais de Lovecraft é considerado fato histórico e a geopolítica global e todas as consequências para os fenômenos apresentados muda nossa percepção do presente. Atente que estas 3 possibilidades mudam o jogo e são opções abertas ao Diretor (aquele que conduz as partidas).

Não se preocupe caso seja um fã do horror: os autores realmente mantiveram os elementos centrais da ficção baseada no horror cósmico: suspense, ausência de grandes sobressaltos, pressão psicológica, perda de sanidade, terror constante e choques incompreensíveis. Tudo isto bem emulado pelo sistema Hitos (sistema autoral da editora Nosolorol, que publicou outros jogos com este sistema, bem como comercializa o mesmo enquanto livro básico para construção de jogo; aliás, o sistema é aberto, seguindo os ditames da licença de jogos abertos OGL).

> O ESTILO DO JOGO

Os protagonistas seriam os alvos dos investigadores em outros jogos que versam sobre os Mitos de Cthulhu. Porém, temos aqui um xadrez difícil de jogar. Ainda que os personagens considerem que haja apenas o seu grupo (o seu culto), há um sem fim de cultos em cena. Então, o conflito com outros que disputam a decifração do desconhecido é mais que previsível.

Há um horror pessoal latente. Quanto mais poder, mais curiosidade, mais debilidades e problemas ao redor do personagem (que deve ter uma Complicação, um aspecto negativo bem pesado; apenas para mencionar que um dos personagens de exemplo do livro tem como complicação “provou carne humana… e gostou”). E tudo isto com a constante prova à saúde mental e perda de sanidade, que por aqui é tão complicada quanto em qualquer jogo que emule este aspecto das obras de horror cósmico.

Assim sendo, um cultista (personagem nas mãos dos jogadores) não é um personagem superpoderoso, repleto de poderes. Ele não é um mago; não é um mutante com poderes. O simples uso de uma capacidade sobrenatural causa degenerações físicas e vai retirando sua estabilidade emocional, até que a sanidade se esvai por inteiro. Um cultista pode ser um ecoativista que utiliza elementos das verdades que descobre para não apenas proteger a Terra, como manter cidades submersas intocadas pela poluição ambiental. Ou ainda podemos falar de um grupo de hackers que visa revelar ao mundo o grande esquema conspiratório de líderes políticos que fazem parte de cultos rivais.

Entenda que os grupos de personagens protagonistas (dos jogadores ou do diretor) podem se agrupar em cultos. E cada culto possui seus meios de influenciar os demais, seus recursos e seus objetivos. Há então uma experiência de jogo que mescla conflitos de interesses (como em conspirações), todas as questões em torno de seitas e cultos e o sempre presente horror cósmico que pode enlouquecer os jogadores a cada pesquisa na deep web.

É possível que uma mesa de jogo possua jogadores em cultos diferentes, apesar disto não ser recomendado (ainda que abra o jogo a interessantes possibilidades). E aí está um elemento interessante no jogo: há uma ficha de culto para cada culto no qual os protagonistas fazem parte (e sim, é possível que façam parte de mais de um culto, apesar de também ser algo delicado a gerenciar). Estas fichas de culto não são elementos passivos. Também possuem características, atributos e fazem parte ativa das pruebas, os testes do jogo (algo como A Arca de Mutant Ano Zero). Pense então que um culto com Recursos 3 pode obter aquele carro que será utilizado para o transporte de um corpo de um reptante com muito mais facilidade que um que tenha Recursos 1. Este elemento é muito interessante pois faz com que movimentos maiores que do próprio jogador (algo que se relacione com rede de contatos: atributo Influência) seja emulado dentro do jogo. Agora pense que cada jogada mexe todas as peças de um tabuleiro de cultos em uma cidade, por exemplo.

Como disse, um grupo de jogo tradicionalmente se organiza em um culto. Cada personagem possui muitos elementos narrativos particulares e o próprio culto é uma “personagem coletiva”, possuindo seus objetivos, regras, etc. É algo incrível criar um culto em conjunto com personagens que inicialmente não teriam razões para se relacionar. E aqui vemos um elemento de nossos dias: uma idosa pode conhecer uma menina de 12 anos em redes sociais: ambas poderiam ter se conhecido em um fórum sobre ufologia… daí a menina disse que tem um livro antigo que fala coisas muito interessantes e “ouve vozes que ninguém escuta”… e um culto pode se formar a partir disto.

> O SISTEMA

Como foi dito, Cultos Inomináveis utiliza o sistema Hitos (algo como marcos, marcos da vida, marcos históricos em português) para mensurar as regras do RPG. Eu tive acesso a este sistema por meio de Cultos Inomináveis; apenas depois tive acesso a outros jogos que usam o mesmo sistema da Nosolorol. Que tenho a dizer? Vamos dar uma olhada em detalhes nele.

Trata-se de um sistema no qual a criação de personagens (e do culto) é muito ágil, simples e tudo que você precisa saber para jogar está por ali (há tabelas para o diretor, mas são tabelas que se memorizam com uma grande facilidade, como a de dano ou dificuldades). São 4 atributos principais (Força, Reflexos, Vontade e Intelecto); Defesa, Iniciativa, Vigor e Estabilidade como atributos secundários e 8 habilidades básicas aos jogadores. Ocorre que não há um nome para as Habilidades, porém apenas um campo de atuação da mesma, que é representada apenas por um ícone. Ao lado de cada ícone, o jogador deve escrever um aspecto que indique alguma característica, como ao lado do ícone que representa interação social (um balão de fala) você pode colocar “Negociação” ou “Intimidação”. Observe que a leitura de uma ficha de personagem já conta a história e descreve” muito bem o cultista.

Ok, há elementos numéricos e textuais na ficha, mas como se joga o jogo? Simples, em qualquer prueba (teste), você soma uma das 4 características com uma das 8 habilidades e lança 3d10. Não some dos dados. 1 dos d10s será o dado menor (m), o outro o central (C) e o outro o Maior (M). Pegue o resultado do dado central (C) e acrescente à soma da característica com a habilidade e bata a dificuldade do teste. Simples assim. Há alguns recursos para usar o dado Maior (M), como o uso de Pontos de Drama (que acionam vários gatilhos durante o jogo).

Quanto ao conflito físico, ou seja, quanto ao combate e ao dano aplicado, a simplicidade é incrível: 1 lance de dados apenas determina se o houve acerto e qual foi o dano. Tudo é muito ágil, simples, porém bastante interessante ao se pensar nas mecânicas por detrás do jogo, uma vez que a existência de 3 resultados diferentes nos dados cria muitas possibilidades (e grande parte delas é explorada no Hitos que foi particularizado em Cultos Inomináveis) de jogo.

E a parte textual da ficha? Tudo que não for numérico e que estiver na ficha de personagem pode ser utilizado como aspecto e auxiliar rolagens, criar complicações, criar elementos novos na história ou prejudicar alguém. Muitos jogos narrativos contemporâneos lidam com isto, mas me atrai muito o como isto é tratado em Cultos Inomináveis, sobretudo quando os autores dialogam com o diretor do jogo ao tratar a condução do jogo.

Um dos destaques mais interessantes no sistema são justamente os hitos (os marcos na vida das personagens). Tradicionalmente este histórico de personagem é algo puramente ficcional, uma grande história que é criada na criação da personagem. Mas por aqui estes elementos fazem parte da ficha e são utilizados no jogo. Não há necessidade de algo além da ficha para contar a história da personagem. E inclusive há uma recomendação (muito boa) para que haja hitos ocultos, que são criados/revelados apenas nas sessões de jogo, tal qual os aspectos de Fate, podendo ser inclusive preconcebidos pelo diretor, que revelará algo chocante à personagem. Ah, e estes hitos podem mudar conforme as aventuras, serem acrescidos, etc.

E é claro que há muito a se falar sobre o sistema de jogo, mas isto não cabe em uma resenha que visa apresentar este RPG.

> O LIVRO

Cultos Inomináveis possui 288 páginas divididas em nove capítulos. Há um capítulo extenso e muito bom acerca dos Mitos de Cthulhu, apresentando Hastor, Nyarlathotep, Azathoth e companhia a quem não conhece os horrores cósmicos. Este capítulo é muito bom e é quase uma enciclopédia. Destaco o capítulo específico sobre os Cultos que podem ser criados (com vários exemplos) e o capítulo para o diretor do jogo. A arte, como disse, é muito boa, a escrita é agradável e dialógica e materialmente é um produto de grande qualidade.

> AVALIAÇÃO

Considero Cultos Inomináveis um dos melhores jogos de horror que temos na atualidade. Há diálogo com uma das referências do horror ficcional com uma abordagem inovadora, para além de um sistema de jogo muito bom e uma proposta criativa e assombrosa. As distintas abordagens possíveis para o horror em Cultos Inomináveis atualizam o gênero e fazem com que você tenha uma vontade incessante de jogar este jogo. Seria este um dos efeitos da leitura deste livro? Será que o ato de jogar este jogo já não signifique a pertença em algo que se pretende maior que a simples diversão? Será que você mesmo, ao ler este texto, não faz parte deste Culto Inominável?

Siga-nos nas redes sociais:
FACEBOOK | TWITCH | YOUTUBE | INSTAGRAM

Jorge Valpaços

Professor, historiador e se envolve em vários projetos sociais envolvendo jogos. É um amante do hobby em todos os sentidos. É um criador e testador incessante de jogos.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *